Até os ossos, novo filme do conhecido diretor italiano Luca Guadagnino, é uma daquelas obras que não deixam nenhum espectador indiferente, especialmente porque explora um dos maiores tabus da nossa sociedade: o canibalismo. Adaptado do romance homônimo Até os ossos (Bones & All, 2015), de Camille De Angelis, o filme extrapola convenções de gênero ao desenvolver uma narrativa cheia de tensões e contradições sobre amores canibais.
No longa, acompanhamos a história de Maren (Taylor Russell), uma jovem abandonada pelos pais que está amadurecendo e tentando entender sua natureza atípica por ser uma Devoradora. Os devoradores, na trama, são seres que têm a necessidade de se alimentar de carne humana devido a uma condição que carregam desde o nascimento. Em sua jornada de descoberta, Maren irá conhecer outros devoradores bastante excêntricos, como o misterioso Sully (Mark Rylance), mais velho e experiente, e o jovem Lee (Timothée Chalamet), que parece fugir do seu passado.
Produzido e dirigido por Guadagnino (Me chame pelo seu nome), Até os ossos é um filme difícil de definir e de analisar. O diretor explora os contrastes entre atos de afeto e violência para produzir cenas intimistas e sanguinolentas. Há, por esse motivo, uma tensão constante na maior parte dos personagens, que passam da ameaça à ternura e da ternura à ameaça de modo brusco e imprevisível.
Os personagens, portanto, são tão complexos quanto o enredo, mas o elenco está à altura da tarefa e faz um trabalho acima da média. Mark Rylance, por exemplo, entrega uma das melhores atuações da carreira ao interpretar o personagem afável-assustador que melhor sintetiza as antíteses do longa. Entretanto, é a dupla Taylor Russell e Timothée Chalamet que desenvolve a maior parte das contradições do filme enquanto seus personagens viajam por localidades americanas em um processo de autoconhecimento traumático e catártico.
Uma das grandes qualidades do filme, porém, será também sua maior limitação: a complexidade da discussão proposta pela trama. As questões colocadas em análise pela narrativa devem dificultar o estabelecimento de ligações com seus personagens principais, que nos causam repulsa por seus atos enquanto instigam nossa empatia pelo sofrimento experimentado na condição de marginalizados. Durante o desenvolvimento do longa, portanto, ficamos sempre nessa tensão entre a aversão e a estima, que pode ser bastante incômoda.
Em uma mistura de drama, romance, terror, história de amadurecimento (“coming of age”) e filme de viagem (“road movie”), Até os ossos é bem dirigido e possui uma narrativa complexa, mas deve dividir opiniões devido às cenas sanguinárias em que representações mais gráficas de um horror canibal estão associadas à intimidade comum das relações afetivas.